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Intervenção Federal e o Novo Ministério da Segurança Pública

2018 começou cheio de ineditismos para quem é da área jurídica. Tivemos, pela primeira vez, uma intervenção federal, matéria recorrentemente cobrada em concursos, mas que até agora tinha ares de ficção científica.
A intervenção foi, contudo, cheia de curiosidades. Nos termos da Constituição, o regime da intervenção, aplicável ao caso, é:

Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;

O Decreto 9.288/2018, contudo, dispõe que:

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Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018.
§ 1º A intervenção de que trata o caput se limita à área de segurança pública, conforme o disposto no Capítulo III do Título V da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
§ 2º O objetivo da intervenção é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro.

Trata-se, portanto, de intervenção parcial, setorial, que não se amolda perfeitamente à hipótese constitucional. Sendo benevolente na interpretação, contudo, seria possível pensar que quem pode o mais, pode o menos. Se é possível à União intervir em todas as atividades do estado-membro, então seria possível intervir em apenas uma delas.

Também cabe observar, rapidamente, que o Decreto não especificou qual é o grave comprometimento à ordem pública que está ocorrendo no Rio de Janeiro. Se for “a violência”, seria necessário especificar quais são os parâmetros que foram levados em consideração para constatar a situação e, sobretudo, quais serão os indicadores que orientarão seu encerramento. Quanto tem que cair “a violência” para que se considere que a ordem pública não está mais gravemente comprometida?

Em terceiro lugar, trata-se de uma intervenção bastante cordial. De um lado, ela foi solicitada pelo governador do estado e, de outro, ele mesmo não foi afastado. Isso também é curioso. Se o Governador escolheu o Secretário de Segurança, o Chefe de Polícia Civil e o Comandante-Geral da Polícia Militar, a premissa de uma intervenção na segurança pública seria o afastamento de todos eles. Afinal de contas, o único motivo de se realizar uma intervenção é substituir a autoridade estadual que, por premissa, deve estar agindo mal. Se o problema for outro, como a falta de dinheiro, de estrutura, de gestão etc., o caso seria de auxílio, não de intervenção. Intervenção serve para restaurar um problema que se reflete na estrutura do pacto federativo, não para auxiliar um ente que não está desempenhando adequadamente suas funções. Para isso, há outros instrumentos.

No meio de tudo isso, e já com outros estados considerando interessante a ideia de “passar a bola” da segurança pública para a União, o governo federal resolveu editar Medida Provisória para criar um Ministério da Segurança Pública. É pouco provável que a criação de uma estrutura burocrática para resolver um problema que é “mais velho que andar pra frente” supra o critério de relevância e urgência pensados pelo constituinte, no art. 62. Mas a verdade é que o STF já reduziu esse critério a pouco mais que nada, ao definir, em reiteradas oportunidades, que esses requisitos não podem ser revistos pelo Judiciário, salvo flagrantes excepcionalidades:

Ementa: AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO E CONSTITUCIONAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA DE CERTIFICADO DE ENTIDADE BENEFICENTE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – CEBAS. ARTIGO 37 DA MEDIDA PROVISÓRIA 446/2008. SUPOSTA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL. URGÊNCIA E RELEVÂNCIA. MATÉRIA QUE SÓ PODE SER EXAMINADA PELO PODER JUDICIÁRIO QUANDO A AUSÊNCIA DE REFERIDOS PRESSUPOSTOS FOR INQUESTIONÁVEL. HIPÓTESE QUE NÃO SE VISLUMBRA NOS AUTOS. SUPOSTO DANO AO ERÁRIO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DO FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 283 E 284 DO STF. AGRAVO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA NA ORIGEM. IMPOSSIBILIDADE DE MAJORAÇÃO. ARTIGO 85, § 11, DO CPC/2015. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

(RE 954301 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 30/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-171 DIVULG 03-08-2017 PUBLIC 04-08-2017)

De toda sorte, se todas essas excepcionalidades servirem para trazer a atuação do governo federal para a grave questão da segurança pública, esse será um bom resultado. Há três serviços fundamentais que o Estado brasileiro assumiu o dever de prestar aos seus cidadãos, que podem ser recitados por qualquer pessoa: saúde, educação e segurança. Ocorre que a saúde e a educação são estruturadas em um sistema federativo com bases constitucionais e legais bem definidas, com fonte de financiamento adequados e responsabilidades distribuídas entre os entes.

Nesse sentido, a Constituição estruturou o Sistema Único de Saúde a partir do art. 196 e determinou um detalhado sistema de financiamento compulsório, com repartição das despesas entre os três entes federados. A Lei Complementar 141/2012 regulou essa distribuição de responsabilidades financeiras, enquanto as Leis 8.080/90 e 8.142/90 definiram a quem cabe prestar cada tipo de serviço.

Na educação, os arts. 205 e seguintes da Constituição definiram a quem compete prover educação pública em cada nível de escolaridade e o art. 212 definiu valores mínimos de aplicação financeira para cada ente federado. Infraconstitucionalmente, a Lei 9.394/96 instituiu as Diretrizes e Bases da Educação, dispondo minuciosamente a quem compete fazer o quê.

Comparado a isso, a regulamentação da segurança pública é pífia. Apenas o art. 144 da Constituição é dedicado a ela. A constituição alude mais vezes a “mandado de segurança” (6 ocorrências) do que a segurança pública (apenas 4 vezes). Pior: o art. 144 se dedica, predominantemente, a definir o óbvio: dizer qual é a função de cada polícia. Apenas o seu §7º determina que “A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”. É o único dispositivo constitucional a se referir, diretamente, à segurança pública.

De modo não surpreendente, essa lei não existe. Assim, a segurança pública é, no direito brasileiro, um “Deus nos acuda” quase tão grave quanto é na vida do cidadão comum. Ninguém sabe quem é o responsável pelo quê, quem deve custear o quê ou de quem é a culpa quando tudo dá errado. Não há um regime federativo de segurança pública, nem para o custeio, nem para a prestação do serviço, nem para a regulamentação das prestações e das atividades.

Segurança pública é uma pauta negativa. O que todo mundo quer é ser bondoso e permitir que as mulheres que têm filhos menores cumpram prisão em casa, mesmo sem analisar o caso de cada uma delas. Foi o que fez a 2ª turma do STF, ao conceder, recentemente, por maioria, um bizarro habeas corpus coletivo cujos pacientes eram “Todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias crianças” (HC 143.641, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20.2.0218). Ninguém sabe nem quem, nem quantas são, nem o que fizeram para estar na cadeia. Todas devem ir para casa.

Criar um Ministério não resolve, é claro, absolutamente nada. A Medida Provisória que o institui é uma norma de Direito Administrativo. Ela apenas realoca órgãos públicos e servidores. Tomara, contudo, que todas essas excepcionalidades possam servir para que o tema progrida, tanto jurídica quanto empiricamente, para uma discussão séria sobre segurança pública no país.

 1Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, procurador da República e professor da rede LFG.

Conteúdo editado pela LFG, referência nacional em cursos preparatórios para concursos públicos e Exames da OAB, além de oferecer cursos de pós-graduação jurídica e MBA.

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